Longevas belezas

Como você percebe as pessoas acima dos 60 anos? Conheça histórias inspiradoras de quem aposta na leveza da vida para combater a discriminação etária

Bengala numa mão e pés enfiados em um par de pantufas? Cadeirinha de balanço e dedos enrugados pelejando horas a fio com o ponto do crochê? Esqueça as imagens-clichês que remetem à chamada terceira idade. Na contemporaneidade, quem chegou ou ultrapassou os 60 anos com saúde já têm resposta pronta e atitudes contrárias à manutenção de um certo tipo de preconceito culturalmente arraigado: o etarismo. A expressão, cunhada desde a década de 1960 nos Estados Unidos, nada mais é do que uma alusão a atos discriminatórios junto a indivíduos ou grupos etários com base em estereótipos associados à idade.

Ruído que cria mofo, mas ainda range os dentes em pleno século XXI, sobretudo quando frases como “você não tem mais idade para isso” teimam em ecoar, tolhendo pessoas e também intrigando quem se debruça intelectualmente sobre as subjetividades dos indivíduos em diferentes contextos sociais. Na Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, o professor e pesquisador dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia, Clerton Martins, é um desses: à frente do projeto de pesquisa “Recriando-se nas temporalidades livres da velhice: um estudo sobre experiências potencializadoras de vida com idosos do nordeste brasileiro”, o também coordenador do Laboratório de Estudos sobre Ócio, Trabalho e Tempo Livre (OTIUM) há muito indaga e problematiza o que é tornar-se velho.

Para ele, que não à toa esquadrinha historicamente os muitos nomes que a velhice vem colecionando – ancianidade, senilidade, terceira idade, generatividade e, mais recentemente, envelhescência (em alusão à adolescência) – o idadismo, outro termo relacionado ao etarismo, é braço extensivo do capitalismo.

“No Ocidente, em geral, depois dos 50 anos não há quem não sinta na pele a pressão do mercado para que você permaneça produtivo ou pelo menos sustente essa imagem. Com o avançar da idade, devo ter bom físico, capital intelectual e um trabalho que justifique o meu sustento, se não vou ser olhado de forma diferente, já que a roda da cultura gira sob o signo do desempenho, do sucesso, da beleza e da jovialidade, valorizando as aparências e o puer ad eternus, o eterno adolescente que permanece negando a beleza de cada ciclo de vida”, destaca.

Professor Clerton Martins, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Ócio, Trabalho e Tempo Livre (OTIUM)  — Foto: Ares Soares

Professor Clerton Martins, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Ócio, Trabalho e Tempo Livre (OTIUM) — Foto: Ares Soares

Entre pesquisas etnográficas e livros publicados sobre o tema, perceber a diferença entre “envelhecimento ativo” e “envelhecimento satisfatório” tem sido o pulo do gato para o professor. “Quando fui pesquisar os velhos pescadores da Comunidade Extrativista do Canto Verde, em Beberibe, observei que o discurso científico, sozinho, não dá conta em refletir sobre qualidade de vida na velhice. Se eu pergunto a um velho pescador que tem diabetes ou hérnia de disco, mas está ali na beira da praia palitando os dentes logo depois de comer o peixe que ele mesmo pescou, como se sente ele vai dizer que está bem, que tem uma vida boa, de luxo até. Mas, segundo a gerontologia ou geriatria, o fato de continuar pescando naquela idade, não tomar remédios ou não adotar certos hábitos vai levá-lo à morte em breve. Quer dizer, o pescador narra uma vida de bem-estar, a partir das escolhas que fez, portanto posso lê-lo como alguém que está envelhecendo satisfatoriamente, mesmo sem tantos cuidados ou atividades obrigatórias recomendadas para se chegar a uma velhice ativa, entende?”.

Fato é que já não envelhecemos como há 20 anos. Para o professor, diante do fenômeno da longevidade, o comportamento conservador relacionado à velhice vem perdendo fôlego e abrindo caminho para a recriação e garantia de valores essenciais ligados à qualidade de vida e realização pessoal, como liberdade, autonomia, autoaceitação, autoestima, autoconhecimento e auto expressão.

“Tendo em conta o aumento da esperança média de vida e o expressivo envelhecimento populacional global, a velhice, enquanto categoria identitária, passou a ser vista como mais uma etapa do desenvolvimento humano e um acontecimento positivo para todas as sociedades e para os próprios indivíduos. Se envelhecer era sinônimo de decadência física e invalidez, onde imperava a inatividade, a solidão e o isolamento afetivo, hoje o envelhecimento ganhou outros atributos, tais como bem-sucedido e ativo”, aferra.

Histórica, a luta da velhice para ser vista com bons olhos é de fora para dentro, mas também de dentro para fora. Clerton Martins sublinha: “se, para alguns, essa etapa da vida pode ser o momento propício para vivências autorrealizadoras e a busca de novos prazeres, para outros completar 60 anos ou se aposentar pode vir acompanhado de temores e receios ligados ao pressentimento de inutilidade, algo como sentir-se deslocado e isolado, o que faz com que a ansiedade e a angústia se instalem. Por isso, independente até de classe social, ou do acesso que se possa ter aos cuidados necessários para envelhecer com alguma dignidade, é preciso saber empreender-se. E não estou falando do empreendedorismo neoliberal. Este não liberta. Falo na capacidade de construir relações colaborativas e motivadoras implicadas com a vida e que trazem novos e belos significados para ela”.

Coração de estudante

“Preconceitos e estereótipos estão em nós também. Devemos fazer um movimento contrário a isso”, observa a psicóloga com especialização em Psicologia Organizacional e do Trabalho e mestra em Educação, Liduína Benigno Xavier. Aos 67 anos, ela é aluna concludente da pós-graduação em Escrita e Criação da Universidade de Fortaleza, alguém que depois de aposentada quase desiste de realizar um sonho antigo e latente: escrever ficção e se dedicar à literatura.

“Tive que vencer a questão da idade para assumir o meu amor pela escrita. Pensava, com certo desânimo: ‘meu Deus, será que ainda vou ter tempo para me dedicar a um exercício criativo tão sofisticado como esse?’ Quis fraquejar, achando que podia ser tarde demais, mas minha filha, que é fã da escritora Socorro Acioli, criadora da especialização, me estimulou a investir em mim. E eu vi que precisava mesmo embelezar ainda mais a minha história”, assinala.

Aos 67 anos, a psicóloga Liduína Benigno Xavier é aluna concludente da pós-graduação em Escrita Criativa  — Foto: Arquivo pessoal

Aos 67 anos, a psicóloga Liduína Benigno Xavier é aluna concludente da pós-graduação em Escrita Criativa — Foto: Arquivo pessoal

Na especialização, Liduína recuperou a pulsação de um coração de estudante. “Voltei a ser aquela aluna CDF, para usar uma gíria da juventude. Tirei notas boas ao longo de todo o curso, sempre apresentei meus trabalhos no prazo estipulado e nunca faltei a uma aula presencial ou virtual. Agora, concluindo essa etapa estudantil, decidi não parar mais e já estou mergulhada na escrita de contos que pretendo publicar e submeter a prêmios literários. Meu TCC, que já está pronto, será o primeiro livro: ‘A História da Crônica e os Papagaios’ é teoria literária e deleite pessoal a um só tempo, fruto de minha admiração pelo cronista Rubem Braga. E essa empolgação toda depois dos 60 me diz que uma vida pode e deve ser feita de recomeços”, afirma.

Como consultora organizacional ainda atuante, foi em sala de aula, à frente de um processo formativo voltado a educadores, que Liduína sentiu pela primeira vez o peso do etarismo. “Um aluno veio me elogiar, mas o discurso era preconceituoso. Falou: professora, nunca pensei que uma pessoa de sua idade pudesse ser tão vibrante e ainda transmitir tanta paixão como docente. Eu então agradeci mas falei para ele que aquela ideia era fruto de um estereótipo construído culturalmente que leva os mais jovens a pensar que os mais velhos são desinteressantes e modorrentos, que pararam no tempo e já não são capazes de apresentar novidades ou se interessar pelo novo, vibrando com isso. Ele então admitiu e se desculpou. E eu gostei de não ter aceito o elogio daquela forma, porque quando calamos ou nos deixamos constranger frente ao ato discriminatório estamos contribuindo com a perpetuação dele”, sustenta.

Para Liduína, há de se envelhecer, mas de forma altiva – e em constante movimento. “Decidi fazer a minha parte para me sentir bem comigo e inspirar respeito: adotei uma postura corporal ereta, estruturo bem o meu discurso, gosto de me arrumar e assim acho que consigo neutralizar o padrão da velhinha de cocó, sabe? Não quero ser vista como alguém frágil ou obsoleta. Tenho tesão, paixão, bom senso, experiência vivida a compartilhar. Esse combo de qualidades já é muito valorizado em outros países mas, no Brasil, o Dia do Ancião, até hoje, é ‘comemorado’ na escola da minha neta levando a turma para conhecer os lares de idosos ao invés de ir às academias de pilates ou bibliotecas e livrarias, onde os mais velhos estarão vendendo saúde física e intelectual”, alfineta.

Não que a futura contista negue as fragilidades e limitações próprias de um corpo longevo. Mas quer ver despertada nas gerações futuras uma visão mais ampla e diversa do que é envelhecer. “Quando você se limita à imagem do idoso incapacitado ou em situação de abandono vai retardando o tempo em que o adolescente vai querer ficar em casa para ver um filme com o avô, pelo prazer de trocar ideias com ele. Ou o contrário: o momento em que o avô vai se animar a ir para a balada com o neto. E por que não? Eu, que prefiro o livro físico, mas leio no kindle também, adoro tecnologias e inovações, como todo jovem, mas desde que estejam a meu serviço – e não o contrário”, provoca a avó que dorme pouco para aproveitar melhor o dia e, como Nietzsche, acha que quem mata tempo é suicida.

A idade do movimento

Fôlego, corpo e estilo de vida incomuns para a idade. Aos 58 anos, a estudante de Educação Física da Universidade de Fortaleza, Catarina Ney de Almeida, hoje experimenta a desforra de um sonho adiado na juventude, quando cursou Direito aos 17 anos para não contrariar a vontade do pai. Carioca da gema, ela já amava e praticava esportes desde criança, mas tornar-se educadora física para bel prazer só lhe foi possível depois de madura e emancipada, ao deixar o Rio de Janeiro para se estabelecer com a família na capital cearense.

Catarina pratica sua rotina de treinos na Academia Unifor  — Foto: Ares Soares

Catarina pratica sua rotina de treinos na Academia Unifor — Foto: Ares Soares

“Tudo tem a sua hora e como jamais me afastei da atividade física, mesmo advogando como profissão, o que faço até hoje, encarei com total confiança e naturalidade a graduação em tese menos recomendável para quem é mais velho. Podia ter sofrido preconceito sim, por estar perto dos 60 anos e já ser, como dizem, idosa, mas juro que nunca senti isso na Unifor. Ao contrário. Meu professor chegou a dizer que estou no meu melhor rendimento físico e como sou nadadora máster do Ceará não me faltam convites para estagiar e atuar profissionalmente. Mas não tenho pressa. Meu sonho é levar os benefícios da atividade física justamente para os idosos, porque sei o que representa em termos de qualidade de vida um corpo são e em movimento”, observa.

Enquanto o diploma não vem e a pandemia da Covid-19 só permite uma volta parcial à rotina de aulas presenciais, impedindo em paralelo as idas diárias à academia, piscina e estúdio de balé, a advogada e futura educadora física que não aprendeu a ficar parada improvisa o próprio treino em casa, correndo diariamente em torno da área externa do prédio, suando a camisa em cima da esteira e levantando pesos entre um processo jurídico e outro despachado on line. Em casa, nem o marido aposentado nem o caçula dos três filhos, ainda adolescente, têm o mesmo pique, embora ela estimule a prole a praticar exercícios físicos. Junto à mãe, Catarina ainda tem ânimo para meia hora de hidroginástica, o que a faz comprovar in loco a importância do movimento em toda e qualquer idade, mas sobretudo na maturidade.

Para ela, que quer nadar e malhar até os 100 anos, pelo menos, tudo o que vem do corpo remete a prazer e saúde. Sempre foi assim e essa convocação à vitalidade também é fruto da influência que o ambiente fez recair sobre ela. “Ter nascido no Rio de Janeiro, uma cidade que há 60 anos tem o Aterro do Flamengo, inspirando vida saudável e ao ar livre e um culto ao corpo, me fez entender muito cedo que não há saúde integral sem exercício físico. E quando vim morar em Fortaleza, há 21 anos, me deparei com outra cultura: é muito recente essa onda de corrida e pedal em espaços públicos locais. E até hoje só vejo os idosos em rodas de conversa nos shoppings ou jogando dominó nas praças. Quero ajudar a mudar isso para ver os mais velhos em movimento, recuperando o ânimo. Somos uma máquina que não pode parar se não logo enferruja”, alerta.

Entre permanências e pertencimentos

Aos 74 anos, o sentimento de pertencer a um lugar tem batido ainda mais forte. Natural de Maranguape, município cearense onde está fincado o sítio Gavião, patrimônio afetivo familiar, o arquiteto e urbanista Marcelo Silva entendeu que não bastou ser vereador, vice-prefeito e prefeito duas vezes de seu rincão natal, defendendo, sobretudo, a preservação do meio ambiente. Era preciso revolver e mobilizar o melhor de sua maturidade intelectual para contar a história da cidade onde estão plantadas as sementes das escolhas que fez durante toda uma jornada.

Aos 74 anos, o arquiteto Marcelo Silva é aluno do curso de Jornalismo  — Foto: Ares Soares

Aos 74 anos, o arquiteto Marcelo Silva é aluno do curso de Jornalismo — Foto: Ares Soares

E assim é que, já fartamente grisalho, matriculou-se no curso de graduação em Jornalismo da Universidade de Fortaleza, tomando para si uma prazerosa tarefa em curso: a de pesquisar, a título de TCC, os fatos que levaram à fundação e emancipação secular daquele é o seu chão. “Depois que dei por encerrada a vida pública resolvi voltar a estudar, pintar, desenhar… Já havia feito o curso de Belas Artes na Unifor e agora, além de escrever o que será o primeiro de três ou quatro livros dedicados a Maranguape, estou cumprindo estágio curricular na rádio FM Maranguape, onde há mais de 10 anos apresento o programa ‘Porque hoje é sábado’. Ou seja, continuo sem tempo para envelhecer e vestir pijama, embora adore contemplar a natureza e as muitas árvores que já plantei e pude espalhar por minha cidade”, poetiza Marcelo.

Para ele, o enfrentamento do avançar da idade nunca foi um fardo, mas continua sendo diário. E é via pensamento crítico que se cerca de “armas”. “Sou filiado ao Partido Verde e sigo atuante na área, hoje através da Fundação Verde Herbert Daniel. Viajo muito por conta disso, Brasília, Rio, São Paulo, sempre me atualizando sobre a evolução e involução do mundo, na tentativa de combater esse vírus do desequilíbrio ecológico. Com isso, mantenho minha mente ativa sem deixar de cuidar do corpo e da alimentação. É preciso construir um estilo de vida para envelhecer tranquilo. O meu se alimenta da natureza e dos gols do meu Tricolor de Aço. Herdei do meu pai a veia ecologista da qual me orgulho e quando meus adversários políticos queriam me ridicularizar diziam que eu era o prefeito dos jardins, porque despertei essa consciência ambiental na cidade, que hoje sabe valorizar seus patrimônios natural e material. Isso, por si só, já me realiza e é algo que se eterniza, para além da minha contribuição e passagem pela Terra. Então como me sentir velho com uma vida tão intensa?”, indaga-se, sorrindo.

Por Redação do Sobral Pop meu ip News com  Emily Aragão / Fonte G1 -CE

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