Prazo de dois anos de vida estimado pelos médicos já se prolongou para seis – e, se depender dos pais, o corpo ainda pequeno de Júlia Dantas vai contornar a Atrofia Muscular Espinhal (ou Amiotrofia Espinhal, a AME) e viver muito mais. Desde o nascimento da filha, os autônomos Jeovana Dantas, 36, e Gilberto Andrade, 37, têm se dedicado a driblar as dificuldades da doença genética – e concentram esforços, agora, para incluir na lista dos distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) o único medicamento disponível para tratamento.
No Ceará, de acordo com estimativa da Associação Brasileira de AME (Abrame), pelo menos 74 pessoas são afetadas pela doença degenerativa (o Ministério da Saúde afirma que, por não possuir notificação compulsória, “não é possível saber o número exato”). A progressão da AME só pode ser impedida por um único fármaco, o Spinraza, medicamento registrado no País pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em agosto de 2017. Desde então, a Abrame solicita à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) o fornecimento gratuito.
Para ter acesso, hoje, só comprando ou abrindo ação judicial contra a União – medida à qual Jeovana e Gilberto recorreram, ainda em 2017. O cumprimento da liminar só foi efetivado em outubro passado, quando Júlia recebeu a primeira das seis doses iniciais necessárias. Cada ampola de 12 mg do injetável custa, em média, R$ 370 mil – o primeiro ano de tratamento, cujas doses são definidas como “de ataque”, totalizaria, então, cerca de R$ 2,2 milhões.
“A Júlia ia dormir bem, e acordava cheia de secreção. Nós poderíamos dormir com ela e acordar sem” Jeovana Dantas, mãe da Júlia
Evolução
“Recebemos as doses do primeiro ano, mas do segundo em diante teremos de acionar o advogado de novo. É um desgaste horrível. Sofremos um ano e meio na Justiça tendo que mostrar o óbvio, vendo nossa filha piorar a cada dia. Ouvi do juiz que ‘um ano de tratamento dela daria pra tratar dezenas de pacientes com câncer’. Mas quanto vale uma vida?”, relembra Jeovana, que é vice-presidente da Associação Unidos pela Cura da AME.
O Spinraza, associado a terapias complementares (como fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional), bloqueia a degeneração dos neurônios motores da coluna vertebral, causada pela AME. A evolução de Júlia após iniciar o tratamento, segundo a mãe, é visível: desde a diminuição da necessidade do respirador artificial até o “milagre” que é o fato de a pequena manter, literalmente, a cabeça erguida. “Ela antes chorava, esperneava pra não ir pra fisioterapia. Hoje, ama. Fica me mostrando ‘olha, mamãe, o que eu sei fazer’, e levanta o braço, coisa que não conseguia antes do medicamento”.
6,7Mil pedidos de medicamentos de alto custo e relacionados ao direito à saúde já somam 6.760 processos no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), neste ano. Em 2018, foram 11.296.
É pela mesma esperança que a família de Lucas Braga luta na Justiça – aos três meses de vida, após constantes infecções respiratórias e muita peleja para conseguir o diagnóstico correto, a AME tipo 1 foi constatada. Para os médicos, o irmão da estudante Mimi Braga (como gosta de ser chamada), 32, só teria mais um ano com a família. Hoje, ele tem 17, e segue aguardando a decisão judicial sobre o SUS fornecer ou não o medicamento. O julgamento do pedido será no próximo dia 16.
“Pela idade, os membros dele já estão comprometidos. Sei que não vai mais andar, mas o mínimo que ele possa ganhar – se comunicar, mexer os dedos, esboçar qualquer som – já seria de grande valia”, desabafa a irmã, endossada pela mãe, Fátima Braga, presidente da Abrame. “Meu filho tem uma mente brilhante. Se ele começar a tomar o medicamento, pode recuperar alguns movimentos. Crianças menores, quanto mais cedo tomarem, podem ter uma vida normal”, avalia.
Obstáculos
Conforme a Abrame, cinco cearenses realizam o tratamento, e mais 15 aguardam cumprimento de liminares já concedidas pela Justiça. O número de diagnosticados no Estado, para a presidente da associação, é subestimado. “Há grande dificuldade em encontrar médicos especializados em doenças raras, o que retarda o diagnóstico, causando danos irreversíveis. Tem pacientes que nunca conseguiram exame”, revela.
“Só o diagnóstico, às vezes, leva um ano. Como a medicação só é cedida a crianças de até 7 meses?” Alexandre Costa, Comissão de Doenças Raras OAB/CE
A incorporação do Spinraza ao SUS, como opina o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Doenças Raras da OAB Ceará, Alexandre Costa, é improvável devido ao impacto financeiro milionário – e, ainda que isso seja ignorado pelo Ministério da Saúde, o advogado acredita que o medicamento será mais um item na lista dos “tem, mas tá faltando” em postos e unidades de saúde públicos.
“Médicos da rede pública têm medo de prescrever, porque sabem que vai ser judicializado. Os hospitais que atendem as crianças, como o Albert Sabin (HIAS), muitas vezes proíbem a realização do exame genético de pacientes, criam diversas dificuldades”, pontua. A recomendação final da Conitec e a decisão sobre o tema, afirma o Ministério da Saúde, devem ser publicadas no Diário Oficial da União ainda neste mês.
Em nota, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que “o diagnóstico molecular da AME poderá ser feito desde que o médico assuma que esta é uma necessidade primordial para o tratamento e prognóstico do paciente”.
Conforme a Sesa, o HIAS realiza apenas o diagnóstico clínico da doença, e atende 12 pacientes com AME dos tipos 1, 2 e 3 por meio do Programa de Assistência Ventilatória Domiciliar (PAVD).
Enquanto não chegam os avanços médico, para diagnóstico precoce; e jurídico, para distribuição gratuita do único medicamento capaz de parar uma doença degenerativa; vários Lucas e Júlias seguem lutando e transformando a AME num verbo imperativo. “Se dissessem ‘Jeovana, Deus vai te dar outro filho. Quer outra Júlia?’. Eu diria ‘com certeza!’. O amor que ela tem pelas coisas, pela gente, nos dá uma força imensa, uma capacidade de buscar o que a gente acredita”, emociona-se a mãe da menina, cujo sorriso de dentes miúdos esconde os sonhos gigantes de uma futura veterinária. E bailarina também, claro.
Contra a inclusão
O Ministério da Saúde afirma que somente crianças de até 7 meses com AME tipo 1 ou entre 2 e 12 anos com AME tipo 2 e “sem escoliose ou contratura muscular”, todas sem necessidade de respirador artificial, “têm benefício no uso de Spinraza”. Para as demais (como Júlia, por exemplo), segundo a Nota Técnica (NT) nº 30/2018, o medicamento seria inútil. Na prática, porém, segundo a Anvisa, os efeitos são visíveis em qualquer grupo. Por omitir a chancela da agência, a União chegou a ser condenada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em agosto de 2018, por litigância de má-fé.
Por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br